“Beberás água corrente no caminho, por isso andarás de cabeça erguida” (Salmo 110,7)

Fevereiro | 2021

O escritor cristão, Chesterton, escreve: “o maior prazer humano é a … surpresa!”. Uma sequência de dias ensolarados nos chateia. De dias chuvosos, idem. Vamos imaginar uma ocorrência: Um dia, na Missa, após a consagração, de repente uma fumaça envolve o altar –no teatro, antigamente, simulava-se isso com pólvora, e quando a cortina de fumaça ia se desfazendo, aparecia, como se viesse não sei de onde, do além, repentinamente, um rosto ou o perfil todo de uma pessoa – pois é, a gente ali, em torno do altar, e aparecesse Jesus mirando cada um de nós e sorrindo! Todos iriam levar um calafrio e cair de joelhos, tomados de espanto. E, certamente, assim ficaríamos por longas horas. Provavelmente muitos de nós, após a Missa, permaneceriam na igreja em enlevo de fé, quase raptados de si.

Mas se isso acontecesse também no dia seguinte, a semana inteira, o mês inteiro, meses, aos poucos a novidade iria perdendo o poder de nos arrebatar. Iria se tornando ordinária e acabaria envolvida pelo véu da cotidianidade.

Por isso é sábio, em vez de esperar que mude o que está fora de nós, para termos surpresas, mudar a nós mesmos! Vários ditos populares corroboram essa experiência. Há um que diz “a vida tem a cor que você pinta”, e é verdade. Se a gente, ao dormir, deixa-se tomar pela expectativa de um dia seguinte luminoso e agradável e, ao acordar, encontra um dia chuvoso, frio, exatamente o contrário do esperado, aquele dia vai nos parecer extremamente desagradável. Não porque o seja de fato, mas porque o que vem, bate de frente com a nossa expectativa. Já pensou por que um tapa na cara da gente dói tanto? É o peso da mão que nos agride, pressionando os músculos do rosto que determina a intensidade da dor? Não. A maioria das pessoas responde que se trata de uma dor “moral”. Mas o que determina de fato a intensidade da dor é a expectativa, a carência que nos faz viver achando que merecemos elogios e carinhos. Aí, vem exatamente o contrário, não tem saída, dói demais! Nossa experiência de doçura é o correlato objetivo da nossa experiência de amargura. O contrário de amargura experimentamos como doçura, e o contrário de doçura sentimos como amargura.

Será que Maria de Nazaré não é alguém que aprendeu a não cair nessa armadilha? Amanhecesse o dia como amanhecesse, antes de abrir a janela, dizia: “Eis-me aqui, Senhor. Faça-se em mim segundo a tua Palavra”. Venha o dia como vier, vou abraçá-lo como o dia que pedi a Deus! Assim sendo, tudo lhe caía como surpresa e novidade. A mó de uma criança, que não calcula. Que aciona cem por cento a competência de fazer o que faz. E que, desse modo de ser, recebe toda satisfação e vive cantarolando.

A Liturgia das Horas, oração oficial da Igreja, rezada por todo o clero e os religiosos – e também por muitos leigos – celebração da salvação que Deus atua, sem parar, dia e noite, tem uma estrutura que leva a beber a água corrente da salvação em todas as horas do dia. O ponto alto de cada hora é sempre um trecho do evangelho. De manhã, é o “Bendito”, Jesus, sol nascente que nos veio visitar. Sem o sol, não há vida. Por isso, ele nos faz pensar em Cristo, a verdadeira vida para o cristão. A Hora Média celebra que aquele que nos visita como sol nascente, de manhã, nos acompanha nos nossos trabalhos. Nas Vésperas ou oração da tarde, o ponto alto é o Magnificat, o canto de Nossa Senhora: “O Senhor fez em mim maravilhas”. Quem celebrar que Ele nos visita no sol que nasce de manhã, que Ele acompanha nas lidas do dia, à tarde vai proclamar: O Senhor fez em mim maravilhas! Bebi água corrente pelo caminho da jornada toda. À noite, nas Completas, o ponto alto é a fala de Simeão (Lc 2,30): “Deixai, agora, vosso servo ir em paz… pois meus olhos viram a vossa salvação”. Vi alguma coisa, além do meu poder e saber acontecendo. Vi a mão de Deus atuando. Vi que o mundo está em boas mãos. Aí, posso descansar em paz. Posso dormir de verdade. Relaxar para valer. Sem “beber água corrente”, a gente pensa que o mundo está na mão da gente, e não consegue descansar nem dormir de verdade.

Paz e bem!!

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